Thursday, March 20, 2008

Lágrimas de lâmina

Eu conto, de propósito, histórias com finais tristes para observar, sem propósito, o quanto você é capaz de descontar em mim com o começo do seu choro. Adoro ver o teu rosto se desfazer aos poucos, como poucos. Adoro ver você se entregar como louca aos loucos. Adoro quando o teu olhar começa a ficar pesado e quando a tua boca começa tremer de leve. Adoro quando as tuas sobrancelhas mudam de direção, quase se perdendo – quase não reconhecendo esse seu novo rosto. Adoro ver você chorar porque sei que o que sai desses olhos não são lágrimas – como qualquer mortal – mas lâminas.

Suas lágrimas são lâminas que nascem de um sentimento morto. Que cortam o seu rosto em linha reta. Linhas de sangue. Que abrem teu rosto e deixam expostos os teus sonhos, teus pesadelos e teus amores escondidos. Elas ainda deixam visível para qualquer um, qualquer imprecisão, qualquer indecisão, qualquer traição – seja você traída ou traidora. Também sei que essas lâminas nascem em algum lugar por dentro dos teus olhos tristes, em algum lugar imaginário – talvez nas pálpebras superiores. Perfuram sua pele com a delicadeza de uma história de amor e amam delicadamente cada rabisco que fazem quando são derrubadas indelicadamente pelo seu choro, às vezes efêmero, às vezes infinito. Agora eu entendo porque chorar dói. Quando você chora os teus olhos se entopem de sangue. Não conseguem enxergar um palmo à frente. Não conseguem enxergar um sentimento à dentro. Por isso seguem sem rumo e sem mim em direção ao chão. Atravessam as suas costas sem pedir licença, deixando para trás desenhos estranhos de figuras desconhecidas. Figuras que se entregaram e você ignorou. Figuras que te ignoraram e você se entregou. Figuras. Apenas figuras. Figuras desfiguradas. Desenhos desanimados. Todos eles expostos nas suas costas. De propósito – para que você não possa vê-los, apenas senti-los e saber que eles estão ali te incomodando ou não, te maltratando ou não, te seduzindo ou não, te desejando ou não, te humilhando ou não.

As lâminas acabaram de alcançar o chão. Elas pingam como gotas de mercúrio numa ferida que não tem cura nem cicatriza. E caminham como um rio solitário, sem margem, pela solidão do seu quarto. E tentam alcançar alguém. E alcançam alguém em vão. Elas não têm os braços longos. Elas não têm as mãos firmes. Não alcançam nada. Não seguram ninguém. Apenas passeiam como se não incomodassem os que passam pelo seu redor. As lâminas se espalham sem dó. Sem piedade. Como se fossem a extensão do seu corpo. Como se fossem veias descontroladas e perdidas. Veias que buscaram fora do seu corpo um corpo parecido com o seu. Um corpo que tenha a mesma estatura, o mesmo peso, as mesmas medidas, mas que tenha mais sangue, que tenha mais costume com a dor, que seja capaz de sofrer mais. Um corpo modelado para a dor. Uma dor que é muito maior que você. Uma dor que é muito maior que o seu chão.

Essas lâminas que se desmancham sem parar, manchando as roupas, os pés, o piso e o tapete, manchando os papéis, os retratos, os fatos e os sapatos, secam, de repente, sem avisar como se nunca tivessem nascido, como se nunca tivessem sido escorridas, como se nunca tivessem sido verdade, como se não quisessem observá-la jogada no chão, desnuda, com frio, com fome, rezando encontrar alguém que te cubra e não descubra que as suas lágrimas são como seus amores: elas cortam.

4 comments:

Anonymous said...

Achei o texto afiado, verdadeiramente cortante. E me senti um pouco nele, sabe? Com minhas lágrimas sempre ferindo minha pele tão fundo que acho que vai ser muito difícil cicatrizar...

É verdade, ainda não entrei no msn. Mas o farei, prometo.

Beijos.

Morganna said...

e há sempre tanto o que se falar de dores e de cortes.
e de amores escondidos.

Camila said...

Oi pedrao

eu nunca entendi muito de literatura
pra falar a verdade, eu nunca gostei de ler. ateh que eu encontrei o seu blog

ele eu nao leio, eu devoro. cada palavra, cada linha, Mas por agum motivo nos seus textos eu consigo ver isso.

de repente pq eu te conheco. de repente pq eu invento os meus proprios pensamentos.Vai ver nao eh o que vc quiz dizer, e sim o que eu quiz que vc tenha dito. Quem sabe? O que eu sei eh que cada vez que venho aqui. cada vez que eu leio um dos seus textos , eu descubro um pedacinho novo de mim. eu penso, reflito e entendo mais quem eu sou.

eu vou sre eternamente grata por isso. mto, mas mto obrigada.

Raven said...

esse texto me lembrou um que eu escrevi ano passado. mto bom! =)