Thursday, January 12, 2012

Página 1

Com você não preciso alcançar o céu: só é um pouco mais difícil voltar para o chão.

(primeiras palavras) 
I
Estamos numa doce e triste manhã de novembro, em algum lugar bem perto de nós: distante dos outros. E é exatamente onde e quando começa este breve romance. Lá fora, os pássaros voam livres e emitem um som alado e raro: uma quase poesia sonora que voa desesperadamente procurando a textura macia de sua pele para pousar delicadamente e ficar, ali, escrita e acariciada para sempre. Aqui dentro, o chá esquenta as xícaras de porcelana, brancas com desenhos orientais: são flores verdes e rosas e claras e, claro, um provérbio chinês que diz talvez eu te amo, talvez não me beba, sou muito quente pra você, ou ainda me espere esfriar. Os provérbios sempre dizem algo que queremos e precisamos escutar e que faz sentido naquele momento, mas logo é esquecido e tão logo é bebido quente ou frio até sumir em nós, num gole só e seco: como somem as memórias mais doces. O chá ainda esquenta as xícaras de porcelana, antes frias como a brisa que embaçava as vitrines da nossa alma, onde se podia escrever com a ponta do dedo indicador sinto sua falta, meu amor. Ao que tudo indica, os amores nascem assim: do nada. Hoje, as tristes manhãs que precisavam amanhecer, amanheceram felizes por ter escutado pela primeira vez o seu primeiro bom-dia. E as pessoas, cabisbaixas por nunca terem tido o privilégio de te ver desfilar pelo mundo, admiram o chão sujo, empoeirado, e não olham para o céu límpido porque sabem que você existe e brilha mais do que qualquer estrela. Mas elas não importam agora: fazem parte de outro cenário. Meu cenário agora é você. Lá fora, o mundo simplesmente acontece. Aqui dentro, tudo é silêncio. Silêncio e, claro, a sua inconfundível gargalhada. Aqui dentro: você simplesmente acontece.

II
Não sei como nem quando surgiu a ideia de começar a te escrever. Tão pouco sei por que resolvi tirar a tampa dos meus sonhos e tentar descrever da maneira mais simples meus sentimentos mais complicados, meus desejos mais confusos e minhas mais sinceras verdades sobre você, sobre mim, sobre nós. Saiba que eu também não sei o que vai surgir deste breve romance: não parei para reler – você é a primeira e a única leitora destas páginas que outrora estariam em branco, mas que de agora em diante estão coloridas, e elas têm a sua cor.

A primeira porque são seus olhos, grandes e quase negros, que vão procurar em cada letra, uma palavra e em cada palavra, uma frase e em cada uma dessas frases, um sentido. E quando acharem esse sentido, talvez eles brilhem ainda mais do que estão acostumados a brilhar, e consigam enfim entender sem exigir explicação alguma que quem escreve não escreve enlouquecidamente porque quer, mas literalmente porque não quer enlouquecer. E quem ama, não ama perdidamente porque quer: ama essencialmente porque precisa se encontrar. Ou talvez eles não encontrem sentido algum e olhem distraídos para contemplar este imenso céu azul quase invisível, e se percam tentando alcançar a nuvem mais alta – aquela que quase ninguém vê, mas que existe. Existe porque está lá, acima das outras. E, sabe, é isso que me conforta. Nada mais. Saber que você existe simplesmente porque está lá. Saber que você é aquela nuvem distraída de olhos grandes e quase negros que se perde inocentemente neste imenso céu azul quase invisível. E existe também porque está aqui: dentro de mim. E é isso que me conforta. Nada menos.

A única porque, sem exagero, não há nas bibliotecas deste mundo, não há nos pisos deste chão, não há na lucidez das minhas loucuras e muito menos na imensidão das suas ausências, nada nem ninguém capaz de entender o silêncio dos meus poemas, curtos e quase cegos, com a mesma delicadeza dos seus olhos, grandes e quase negros. Eles têm o privilégio de ler as entrelinhas de cada verso, e por ali ficar por horas e horas e dias e dias, até adormecerem num sonho confuso e denso – como são os sonhos dos que amam e não podem se entregar. E eles nunca se fecham porque precisam de vida para morrer, e também precisam se alimentar dessa poesia para continuar a brilhar e a sentir saudades e a mentir verdades. Por isso serão sempre grandes e quase negros.

Já, meus poemas têm a necessidade de buscar nos seus traços o formato de cada letra e o compromisso de catar em suas mãos as palavras mais imperfeitas – aquelas que nunca foram versificadas – e ver se cada eu te amo gritado silenciosamente pelos seus lábios finos consegue me acolher sem dentes, sem me deixar sofrer e só me fazer enxergar o que há de mais belo no amor: aquilo que não se diz. Meus poemas também têm a obrigação de contar nos seus dedos todas as vezes que eu não pude ouvir o tom da sua voz tão deliciada dizer que sente a minha falta. E nesse timbre ficar e respirar por meses e meses e rimas e rimas, até adoecerem num sonho doce e tristecomo são os sonhos dos que amam e não encontram ninguém para se entregar. E eles nunca se ausentam por muito tempo porque precisam das migalhas da sua presença, dos pedaços mastigados do seu coração e de alguns goles das suas lágrimas para não secarem, sozinhos, como os pontos finais dos breves romances sem final feliz. Por isso serão sempre curtos e quase cegos.

Saiba que também não sei muito bem o que pode sair da boca e dos poros e das mãos e dos olhos de um homem de carne e osso e sangue e sonhos que se permite acreditar na realidade de vez em quando. E mesmo que nada faça sentido. E mesmo que eu não consiga me expressar com as palavras certas. E mesmo que você não interprete da maneira mais simples meus sentimentos mais complicados, meus desejos mais confusos e minhas mais sinceras verdades sobre você, sobre mim, sobre nós; saiba que aqui, em cada página, em cada erro ou palavra, em cada espaço ou entrelinha, em cada ponto e vírgula, estão os meus mais vivos pensamentos, aqueles que pulsam e vibram cada vez que pensam nos seus olhos grandes e quase negros. Pensamentos estes que começaram a ser pensados naquela doce e triste manhã do dia dezesseis de novembro de um ano que eu prefiro – e preciso – não revelar. Aquela mesma manhã onde te vi desfilar inocentemente pelo meu mundo pela primeira vez.

III

Estou te escrevendo de coração totalmente aberto: exposto. E o risco de me ferir, nesse caso, é bem maior. Mas sangrar agora é o de menos. Quero falar de você. Quero falar de mim. Quero falar de nós. Coloquei na ponta dos meus sonhos tudo o que o lado esquerdo do meu peito sempre quis dizer, mas talvez por medo de não encontrar as palavras exatas – ou talvez por não saber exatamente como enfrentar os seus olhos grandes e quase negros, e não querer vê-los chorar e manchar essas páginas com o sal da sua dor, deixando então o gosto doce da sua ausência amargurar os meus lábios desmanchados – preferiu escrever. E escrever nada mais é do que falar com mais calma. Falar pensado. É pensar em você do jeito mais improvável e provável: desnuda e delicada. É lutar contra tudo o que me afasta dos seus lábios, finos. É contar para todos o que mais me aproxima dos seus braços, compridos. É enfrentar sem medo de ser infeliz a estupidez que é assumir que eu te amo e querer sumir e te amar: ao mesmo tempo, no mesmo tempo; e ao mesmo tempo é aceitar, sem medir as consequências, a covardia que é você dizer que também me ama e não poder sumir e me amar: ao mesmo tempo, no mesmo tempo. É encostar delicadamente meu corpo frágil na quentura das suas mãos tão frias e me deixar derreter pelo seu abraço infinito. É admirar, sem precisar fechar os olhos, a grandeza e a escuridão das suas pálpebras: que nada mais são do que um véu grandioso e escuro pelo qual você se esconde e não se abre – talvez por ter medo de revelar que a janela da sua alma, hoje, está de portas fechadas.

Pensar em você é abdicar dos sonhos sem deixar de lado o eterno prazer de sonhar. É encarar a realidade com os pés no chão e ter as mãos estendidas na imensidão de um céu noturno e distante, na vã e necessária tentativa de buscar, entre as estrelas mais brilhantes, a delicadeza dos seus traços para te trazer de volta ao meu mundo – e você brilha mais do que todas elas, mabelle. É esboçar o seu rosto no papel, rabiscar os seus olhos grandes e quase negros na textura suja e inexata de uma folha branca e perceber que qualquer rascunho ou traço seu já nasce, na sua essência, uma obra-prima e imperfeita. É descobrir que é literalmente impossível te esquecer. Quando tento te apagar de todas as formas de todos os meus poemas, curtos e quase cegos, até o invisível desenho da borracha, ao tentar te fazer sumir dos versos, acaba te trazendo diversas vezes de volta para essas páginas que outrora estariam em branco, mas que de agora em diante são coloridas, e elas têm a sua cor, e elas têm as suas rimas. Escrever nada mais é do que entender que você não está ali, mas está. É aceitar que tudo ficará engasgado no poderia ter sido. E, pode ter certeza, o poderia ter sido sangra muito mais do que o não foi. E para adestrar essa loucura quase bestial que é sangrar no seu colo e você não ter tempo para estancar o meu sangue, resolvi que, a partir de hoje, dedicarei um pouco das minhas noites neste pequeno diário, nesta curta história de amor ou neste breve romance, chame como preferir: ele é todo seu: você é a primeira e a única leitora – lembra?


IV

Todas as noites você dormirá comigo e amanhecerá nas minhas palavras – vomitadas. Todas as manhãs você acordará comigo e estará nos meus silêncios – engasgados. Todos os dias você nascerá comigo e morrerá nos meus poemas – incompletos. Estará também naquele beijo que não nos demos porque não nos vimos, ou naquela saudade que não bateu porque não nos tocamos. Estará naquela voz embaraçada que não sabe se ama ou se cala e, por fim, estará nos meus passos descompassados quando atravessam desesperadamente a calçada de uma rua qualquer sem olhar pros lados porque sabem que você está no céu e voa livremente entre as nuvens mais altas, como um sonho delicado e perdido. Aquele mesmo imenso céu azul e quase invisível, bordado com infinitas estrelas. E você brilha mais do que todas elas, pode ter certeza. Acho que só assim, por enquanto, consigo te ter por inteira: minha metade. E é uma delícia te imaginar, te pensar, te sonhar. Por mais cruel que seja não poder te ver todas as manhãs para dividir o mesmo café e preparar o seu pão – o mais branquinho da padaria, claro!com manteiga – com sal, obviamente! Por mais que eu não possa sair de mãos dadas com as suas e mostrar para deus e o mundo que você também é um pouco deusa, um pouco mundo e um pouco minha. Digo um pouco porque não podemos ser totalmente de alguém. Isso estragaria a beleza maior que o amor pode nos proporcionar: sermos livres, sendo nós. E tendo-te um pouco sei que te terei para sempre – a liberdade sempre foi a mais bela algema dos amantes em qualquer época, em qualquer tempo, em qualquer mundo. E pode ter certeza que o pouco de mim que sobrevive em você é todo seu. Posso contar contigo até a eternidade ou devo me contentar com as incertezas impostas e postas diariamente em nosso destino? Desde então todas as manhãs de novembro são doces. Doces porque te trouxeram e me fizeram despertar no seu mundo sem medo de tentar ser feliz. Desde então todas as manhãs de novembro são tristes. Tristes porque te trouxeram e me fizeram voar como um sonho delicado e perdido que tenta pousar na sua realidade, mas não consegue. Por que elas te trouxeram, mabelle?

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