Friday, April 18, 2008

Aqui por dentro

Instalado num lugar imperceptível dos seus olhos posso apreciar com mais nitidez o que você nunca ousou me contar. Eu sempre acreditei que no esconderijo da sua memória havia bem mais histórias interessantes do que nos contos infantis – que sempre me desinteressaram, por sinal. Eu sempre soube, mas nunca quis aceitar, que por dentro dessa sua pele, ainda desprotegida, existia um mundo que, de certa forma, te protegia. Um mundo repleto de amores cobertos de razões, um mundo entupido de dores inventadas por amores cobertos de razões, um mundo cheio de multidões desorientadas por amores cobertos de razões, um mundo transbordado por religiões desacreditadas por amores cobertos de razões, um mundo cheio dos deuses comuns cobertos de razões, um mundo transtornado de homens incomuns cobertos de razões, um mundo cansado de sonhos cobertos de razões. Um mundo que, de certa forma, me confortava. Era tão bom saber que dentro daquelas formas quase imperfeitas ainda reinava um sentimento imaturo e puro tentando se aperfeiçoar.
Através dos seus olhos:

Vi claramente os homens que te usaram – aqueles que te deram rosas e te disseram inúmeras vezes inúmeros “eu te amo´s”. Aqueles que não ligam mais se o seu cabelo cresceu dois centímetros ou perdeu um palmo. Aqueles que já souberam seu nome, seu endereço e já tiveram uma foto sua e que agora têm filhos com outras mulheres com outros nomes, moram em outras casas, aparecem em outras fotos, bebem em outros bares e se perdem por outros mares. Mares, esses, que você não poderá mais navegar.

Vi nitidamente as drogas que abusaram da tua insegurança - aquelas que te fizeram esquecer por algumas horas a realidade confusa que nos rodeia. Aquelas que te acolheram com a promessa de te levar para os lugares mais seguros e mais serenos que você podia imaginar. Mas quando acordou percebeu que não havia nem segurança, nem serenidade e muito menos lugares. Lugares, esses, que você não poderá mais encontrar.

Vi as suas crenças que caíram em desuso. Antes, você rezava por verdade. Hoje você reza por costume. Enquanto eu, acredite se quiser, ainda rezo por você. Rezo por você não por bondade-cristã, mas por ter sido incapaz de me acostumar com a falta que você me faz, principalmente, no momento que antecede a vontade de dormir. (Nessas horas eu sempre pensava em você). Eu só rezo por coisas que desconheço: você, deus, eu... Eu só prezo por coisas que desconheço: eu, deus, você... Eu só desprezo coisas que eu desconheço: deus, você, eu... Coisas, essas, que você não poderá mais enganar.

Por dentro, seu corpo sempre me pareceu uma fortaleza, apesar de testemunhar contínuas vezes os seus cílios oscilarem entre o destempero de viver uma paixão efêmera duradoura e o tenro prazer de se ter um amor eterno por um minuto.
Por fora, seu corpo sempre me pareceu uma fraqueza, apesar de continuar testemunhando constantemente pequenos sinais de melhoras e sentir, delicadamente, o esforço das suas pálpebras que se fecham. Prenda-me. Não me deixa sair aqui de dentro. Deixa-me morrer aqui. Deixa-me viver aqui?

6 comments:

Morganna said...

desconhecido intenso.

FlaM said...

Tá bom, eu prendo... tá bom eu deixo!
Mas que mania a sua de andar por dentro da gente...

Gostei de ver pronto – em sua inteireza
bj grande! f

FlaM said...

querido pedro, vc não postou de novo, e eu voltei de novo, então li de novo. E não é que gostei de novo, eu gostei mais. Li mais devagar, sem a ansiedadeda revelação do texto, do texto conhecido em partes revelado em sua inteireza.
Gostei demais. Eu sinto quase um desconforto pelo que seu texto tem de radiográfico, cintilogáfico, talvez. Me faz lembrar algo que sinto quando leio clarice lispector: "ela parece que caminha por dentro da gente". Um beijo, Flávia

Talita. said...

eu gosto tanto desse texto que tive que deixar registrado num comentário a minha incapacidade de comentá-lo.

assim, paradoxalmente, como todo o resto.

:: Daniel :: said...

Seu texto me deixou sem palavras de tão intenso que é...

Cris said...

De onde vem tamanha inspiração?
...parece-me vir de uma realidade, vivida, sentida....